Não homenagearemos Samuel Klein!
Por: Mulheres por + Direitos
16 maio 2021, 18:23 Tempo de leitura: 7 minutos, 18 segundosO horrível caso dos Klein – Samuel, pai e fundador das Casas Bahia, e Saul, filho e herdeiro – nos faz retomar, como feministas, muitas questões de base sobre a misoginia e os avanços que ainda não conseguimos fazer em defesa da vida das mulheres.
Não há sequer um ponto de partida para se falar desse assunto, um quadro do emaranhado das opressões que a sociedade nutre por nossas vidas e nossos corpos. Começando pelo fim: apesar da informação de que Samuel abusava sexualmente de meninas de 9 a 17 anos, proliferam-se nas redes sociais os ataques dos que acreditam que essas crianças e adolescentes “eram muito bem pagas”, ou mesmo que “estavam lá porque queriam e agora querem arrancar dinheiro da família”.
Isso ilustra a enorme dificuldade das pessoas em reconhecer vítimas do sexo feminino como vítimas. É histórica a mentalidade coletiva de que mulheres são sempre responsáveis ou culpadas por tudo. Soma-se a isso uma cultura que entende prostituição como trabalho, e não como objetificação e exploração do corpo da mulher. E nesse ponto, devemos admitir, há até mesmo frentes progressistas que defendem essa ideia, fazendo coro à pérola “é um trabalho como qualquer outro”, ignorando que a maioria aterradora de mulheres prostituídas nesse país jamais escolheram isso que eles chamam de profissão. Muitas, inclusive, foram iniciadas nessa vida por meio de estupro e aliciamento quando ainda eram crianças, tal como algumas das vítimas de Samuel Klein que, segundo depoimentos, chegaram a isso porque não conseguiram se desvencilhar dos danos causados pelo abuso. Lotadas de problemas psicológicos, abandonaram a escola e, depois de anos de dependência do ciclo de estupros e recompensas, não encontraram outra saída para sobreviver senão a prostituição.
Aliás, é bastante importante repensar toda a questão da prostituição ao analisar o caso dos Klein porque, além dos absurdos comentários dos que apontam dedos às vítimas nas redes sociais, temos a linha de defesa dos advogados de Saul, que seguiu os passos do pai em seu esquema de abusos: eles dizem que o cliente não cometia nenhum tipo de crime, mas que era apenas um grande e generoso sugar daddy. Para quem desconhece o termo, ele descreve homens mais velhos e ricos que “trocam” agrados e dinheiro por atenção e/ou favores sexuais de mulheres jovens. A prática vem sendo normalizada como algo distante da prostituição até mesmo por algumas cabeças mais feministas, que sugerem que nessa relação as mulheres supostamente saem ganhando ao “usar” o daddy para satisfazer suas vontades materiais em troca de algumas amostras de seu próprio corpo (fotos nuas, presença em um jantar etc.). É hora de dar um passo atrás e olhar esse quadro com mais amplitude, já que sabemos que o patriarcado jamais aceita sair perdendo para as mulheres. A rotina de um sugar daddy é também a de exploração de mulheres, é também a de se aproveitar das desigualdades sociais e salariais que precarizam a vida delas. Portanto, nada alivia a culpa de Saul Klein, nem mesmo o tosco argumento de seus advogados.
Apesar de tocar na questão da prostituição como um dos aspectos do problema, o esquema dos Klein tem, muito antes disso, algo ainda mais pesado e doloroso em sua raiz: a pedofilia. Nos relatos, uma das vítimas conta que Samuel Klein não apenas fazia questão de recrutar menores de 15 anos, mas que também as meninas “velhas”, de 16 a 18 anos, que acabavam sendo aliciadas por suas funcionárias, eram orientadas a agir como menininhas, com voz e jeito de criança, e mentir que eram mais novas. Além disso, ele era obcecado por meninas virgens, que tivessem em torno de 12 anos de idade, o que deixa tudo ainda mais repulsivo. Essa talvez seja a ponta do emaranhado de horrores que compõem essa história, porque nos leva a compreender a origem das práticas predatórias de Klein e de como ele mantinha, com sucesso, o cativeiro psicológico em que aprisionava suas vítimas. Alguns dos relatos dão conta de meninas que estiveram presas às garras de Samuel durante toda a adolescência, algumas, como uma das irmãs Carvalhal (foram 4 vítimas da mesma família), desde crianças. Elas contam que inicialmente Samuel Klein agia como um bom velhinho, que apenas queria presenteá-las. Uma menina, então, contava sobre a “oportunidade” à outra, fazendo com que mais carne nova chegasse à salinha do dono das Casas Bahia. Durante a visita elas recebiam, com incômodo, alguns toques inadequados em seus seios em desenvolvimento e nádegas, mas, de cara, não passava disso. O encanto pelos presentes que elas nunca tiveram oportunidade de ganhar antes desviava a atenção do que podia ser um alerta de perigo.
Depois dos presentes, as vítimas relatam o sentimento de deverem algo ao “benfeitor”, quando ele resolvia aprofundar suas carícias ou até mesmo consumar o estupro, levando as meninas à sala ao lado da sua, que mantinha preparada para isso, com cama e tudo. Elas se sentiam culpadas por terem se envolvido naquela situação e desamparadas por não poder contá-la a ninguém. Cenário perfeito para muita manipulação por meio de mais presentes e mais abusos. Perfeito também para que elas se sentissem impelidas a convidar outras, tanto pela pressão dele e de seus subornos, quanto pelo sentido de não estarem sozinhas naquele barco. Situação muito semelhante à ocorrida nos Estados Unidos, no caso do bilionário Jeffrey Epstein. No documentário, que leva seu nome, uma das depoentes chama o esquema de “pirâmide de abusos sexuais”. Exatamente como funcionava o esquema de Klein.
É tristíssimo pensar na situação de vulnerabilidade dessas meninas, todas pobres ou com frágil estrutura familiar. Seduzidas por ofertas que faziam brilhar seus olhos “de quem nunca teve nada na vida” (como dito por uma delas), como a de um par de tênis, um eletrodoméstico ou convites para passear de iate ou helicóptero, caíam numa armadilha que as levaria a tanto sofrimento que nos revolta imaginar. E assim eram atadas às correntes da gratidão e da culpa usadas para as manipular psicologicamente. Uma mostra pesada de como a vida das mulheres custa barato para os homens que mergulham nos seus privilégios inquestionados.
Fica evidente a relação de poder que foi construída por Samuel Klein que, longe de ser um homem isolado na ação, dispunha de uma grande estrutura de aliciamento de meninas. Essa relação de poder, que vinha tanto da sua posição financeira que permitia a exploração sexual da pobreza como do seu reconhecimento na sociedade como o “Rei do Varejo” ganho graças a uma suposta meritocracia de seu esforço que o levou até o sucesso, foi essencial para que a estrutura de crimes sexuais permanecesse por anos. A evidente dificuldade das vítimas em realizarem denúncias, impedidas por subornos e ameaças, evidencia um deplorável sistema que garante o dinheiro como a compra do silêncio, mesmo que isso custe a vida de mulheres. Esse poder no caso da família Klein se colocou também de maneira hereditária. Saul Klein para além de ter concorrido nas últimas eleições como um possível vice-prefeito em São Caetano do Sul – cidade que possui a primeira sede das Casas Bahia – é também um nome conhecido no meio do futebol como um cartola.
O caso da família Klein nos faz olhar para o passado para traçarmos nossa luta no presente e futuro. Garantir justiça às vítimas de Saul Klein, que estão corajosamente travando a batalha na justiça, é uma resposta mínima e necessária. Apesar das vítimas de Samuel Klein terem uma maior dificuldade pela prescrição dos crimes, a elas também devemos justiça e respostas. A primeira delas é sem dúvidas que a sociedade saiba quem realmente foi Samuel Klein. Da cidade onde escrevemos, e que possui grande relação com o caso, estamos na batalha para que o pai abusador não seja mais homenageado, pois carrega nome de rua e de equipamentos públicos. A longo prazo, precisamos fortalecer a luta das mulheres feministas para que nos revoltemos com essa lógica política e financeira que permite que os poderosos façam esses escândalos com nós mulheres e saiam impunes.